Democracia, Participação, Revolução<br>- Três vértices de um triângulo <strong>(1)</strong>
O tema deste painel A luta pela Democracia na América Latina hoje coloca uma questão prévia. A palavra democracia tem significados tão diferentes e ate contraditórios, consoante aqueles que a utilizam, que me parece indispensável lembrar que no mundo actual o vocábulo serve para designar regimes políticos e comportamentos incompatíveis, alguns dos quais, paradoxalmente, antidemocráticos.
Georges Labica, um dos mais lúcidos filósofos marxistas contemporâneos, afirmou, em recente Encontro promovido na Espanha pela Corriente Roja, que uma revolução autêntica somente pode optar pela democracia participativa como forma de governo. Identifico me com essa opinião do autor do Dicionário Critico do Marxismo. Ela implica uma conclusão: o objectivo principal da verdadeira democracia é a transformação radical das sociedades onde o povo, tornado sujeito, se mobiliza para destruir as estruturas de dominação criadas pela burguesia. A clarificação é imprescindível, porque, quando falamos da luta pela democracia na América Latina, corremos o risco de nos perdermos num labirinto se não ficar transparente desde o inicio que:
A democracia é uma ausência na quase totalidade do Hemisfério. Instituições formalmente democráticas funcionam na prática, em quase todos os países a Sul do rio Bravo como instrumento de concretização das estratégias e interesses do imperialismo e das burguesias locais. O controle da mídia pelas forças do capital impede, com raríssimas excepções, as grandes maiorias de tomar consciência da caricatura de democracia que serve de moldura a sistemas de poder que excluem na pratica a participação do povo nas decisões de que dependem o seu presente e o seu futuro.
A intelectualidade burguesa gosta de recordar que a Revolução Francesa se inspirou na democracia aristotélica. Mas omite que na democracia aristocrática de Atenas, como em qualquer polis grega, somente uma ínfima percentagem da população tinha acesso às assembleias. A Revolução Americana, que se tornou quase objecto de culto para a burguesia brasileira, como criadora de um modelo de democracia, produziu uma Constituição que apenas concedia o voto a uma minoria de cidadãos. Esse direito, erigido em privilégio, nascia da riqueza. A farsa democrática não é identificável somente na América Latina. Em artigo de comentário ao NÃO francês, publicado no sítio web resistir.info, chamei a atenção para o facto, com frequência esquecido, de que a chamada democracia representativa não passa hoje na Europa de uma figura de retórica.
Nos 15 países que integravam a União Europeia antes do seu alargamento os regimes existentes adquiriram progressivamente os contornos de ditaduras da burguesia, empenhadas em aplicar as receitas do neoliberalismo globalizado. Nos novos membros da Europa Central e do Leste os governos alguns com tendências fascizantes actuam como satélites de Washington. Obviamente, existem diferenças profundas entre os regimes supostamente democráticos de países como a França e o Reino Unido apenas um exemplo e os existentes na Colômbia e no Peru. Elas resultam do desenvolvimento da história, da cultura dos povos, do funcionamento das instituições e também da presença de heranças imperialistas complexas. Mas a diferenciação não impede a convergência no tocante a um objectivo que pode ser apontado como denominador comum: na Europa, tal como na América Latina, as políticas dos governos eleitos «democraticamente» são elaboradas e executadas com duas únicas excepções à revelia da vontade dos povos que os viabilizaram. Os mecanismos institucionais são utilizados em beneficio das classes dominantes, para excluir a participação em vez de a promoverem.
Este alerta inicial justifica se num Seminário em que nos reunimos para reflectir sobre a luta pela Democracia no espaço latino americano. Coloco ênfase na palavra luta. Em Julho passado, o escritor José Saramago, meu compatriota, em entrevista concedida em San Salvador, divulgada pelo sítio «Rebelion» afirmou que hoje «não se trata de substituir um governo por outro, mas de refundar o conceito de democracia». No mundo globalizado sublinhou «estamos vivendo todos numa espécie de Apocalipse Negro no qual não parece haver solução imediata e é isso que representa a maior afronta à humanidade». Segundo o Premio Nobel de Literatura, para superarmos a crise de civilização e evitarmos o colapso, é urgente «colocar no centro da discussão o tema da democracia, da democracia autêntica, de refundar o conceito a partir das necessidades reais em que vivem as pessoas».
Reflectindo sobre a alternativa, conclui que a exigência para todos, diária, terá que ser «a reinvenção da democracia». Creio que todos estamos de acordo com Saramago quando nos recorda que «se não chegarmos a uma democracia plena (...) o poder tende a concentrar se mais no politico, subordinado ao económico e ao financeiro, e será autoritário, e então, se não se mudar essa relação de poder, a situação se agravará». Na prática já é autoritário, funcionando como ditadura da classe dominante. E essa realidade força a uma tomada de consciência de todos quantos rejeitam o sistema: a luta não pode esperar pelo debate teórico sobre os contornos da democracia autêntica. Antes de podermos definir com rigor o que queremos, somos forçados pelo movimento da história a lutar contra o que não queremos, contra aquilo que recusamos.
A democracia participativa, revolucionária, tal como a define Labica, será o desfecho natural de um confronto de duração imprevisível com o monstruoso sistema de dominação planetária do capitalismo, hegemonizado hoje pelos EUA. O capitalismo, como Istvan Meszaros e Samir Amin, entre outros pensadores, têm demonstrado, atravessa uma crise estrutural que o imperialismo estadunidense procura superar, em opção irracional, através das chamadas guerras preventivas e do saque dos recursos naturais de povos .do Terceiro Mundo. Coloca se portanto uma questão de prioridades: a primeira tarefa, em defesa da humanidade contra a barbárie, deve ser portanto a participação dos povos numa luta solidária, tão globalizada quanto possível, contra a engrenagem imperial que os oprime. Na América Latina, essa difícil luta pela Democracia, em desenvolvimento, tende a assumir dimensão continental, assumindo características peculiares, mas muito diversificadas.
Um panorama muito contraditório
A América Latina é uma diversidade. Entre os países que a constituem existem abismos culturais e económicos. O denominador comum é a dependência de um sistema de poder imperial e a herança resultante com excepção do Haiti e de algumas ilhas de terem sido colonizados pela Espanha e por Portugal cujos idiomas são hoje aqui falados por mais de 500 milhões de pessoas. Foram diferentes as estratégias dos colonizadores. Mas, com poucas excepções, ficaram assinaladas por políticas de genocídios. Os de Tenochtitlán, no México, e o posterior à conquista do Tahuantinsuyo, no Peru do Incário, deixaram memoria pela sua amplitude.
Essas chacinas (dois séculos após a conquista, a população desses territórios não atingia 20% da existente antes da chegada dos espanhóis) deixaram marcas profundas no imaginário dos povos mestiços contemporâneos, filhos de culturas antagónicas. A independência politica não conduziu à independência real. Os ideais de Bolívar não se concretizaram. Nos países por ele libertados, no México, no Prata, no Brasil, em toda a vastidão latino americana, a um tipo de dominação sucedeu outra. Durante mais de um século, o imperialismo britânico, aliado às oligarquias locais, exerceu sobre a América do Sul uma hegemonia económica ostensiva. A partir do final da Primeira Guerra Mundial, o imperialismo estadunidense, que já dominava no México, na América Central e nas Caraíbas, ocupou o seu lugar. Com a agravante de que os mecanismos da dominação politica, em muitos casos, acompanharam a penetração do capital, reduzindo alguns países à condição de colónias de novo tipo.
Não cabe aqui recordar a história contemporânea da América Latina. Mas, para reflectirmos sobre as lutas do presente, é oportuno lembrar que, a partir do inicio da Revolução Cubana, o sentimento anti imperialista, que permanecera na consciência dos povos, cresceu torrencialmente, emergindo como elemento fundamental nas lutas contra o sistema de opressão generalizado. Cuba demonstrava que era possível derrotar o inimigo interno e resistir ao imperialismo. A incompreensão de que a revolução cubana se impusera em circunstâncias excepcionais, gerou ilusões e esteve na origem de uma época de aventuras guerrilheiras, que envolveram uma geração de revolucionários românticos. O desfecho desses desafios de gente generosa é conhecido. Em algumas situações foram o prólogo da implantação de ditaduras militares sanguinárias. Chamarei apenas a atenção para duas questões:
1 - Contra o que Washington proclamou após a morte do Che, a derrota das guerrilhas rurais e urbanas no Sul do Continente não demonstrou que a luta armada se havia tornado uma impossibilidade absoluta. A vitória do sandinismo, na Nicarágua, em 1979 viabilizada pela estratégia de Carlos Fonseca Amador, um grande revolucionário quase desconhecido e a incapacidade do imperialismo para derrotar militarmente os combatentes da Frente Farabundo Marti, em El Salvador, e os da UNRG na Guatemala, desmentiram a tese imperialista. Simultaneamente a insurgência colombiana tem sobrevivido a todas as tentativas empreendidas para a aniquilar.
2 - A persistência nos povos latinoamericanos de um sentimento anti-imperialista enraizado torna hoje possível na América Latina o que na Europa, por múltiplos motivos, não tem estado ao seu alcance. Refiro me à possibilidade de conquista do poder Executivo através de eleições por personalidades e forças que se apresentam com programas anti neoliberais e anti imperialistas. A reflexão sobre a segunda questão, isto é sobre problemas e desafios colocados pela chamada via institucional, é muito importante num Seminário como o nosso. Uma revolução cuja meta seja o socialismo a curto prazo, não é, com a actual relação de forças, possível em sociedades como as latino-americanas. Mas a luta pela conquista de parcelas do poder político, onde quer que isso seja viável, apresenta se como dever para as forças progressistas.
Lénine enunciou uma evidência ao afirmar que o governo em sociedades capitalistas representa apenas as insígnias do poder. É parcela e instrumento do Estado criado pela burguesia para lhe servir os objectivos. A evolução e o desfecho da experiência socializante da Unidade Popular, no Chile, lembram nos que o governo de Allende nunca controlou o Estado na sua totalidade o Legislativo e o Judiciário hostilizaram no permanentemente e muito menos o Poder económico.
O desenvolvimento da História nos últimos anos desmentiu, porem, a tese segundo a qual a era das revoluções teria findado e o neoliberalismo globalizado seria a ideologia definitiva. Seattle serve de referência, assinalando o início de uma época em que os povos começaram a mobilizar se para expressar, em manifestações marcadas pelo espontaneísmo, a sua recusa do projecto de vida que o imperialismo lhes pretende impor. No caso da América Latina, os seus povos infligiram derrotas importantes ao poderoso vizinho do Norte. As consequências desastrosas das políticas do chamado Consenso de Washington na realidade um diktat geraram um descontentamento entre as massas que se traduziu em dois tipos de rejeição:
1 - Gigantescas acções de protesto que desembocaram em rebeliões populares que levaram ao derrubamento de Presidentes, como ocorreu no Equador, na Bolívia e na Argentina.
2 - A formação de alianças de forças maioritariamente progressistas que, no âmbito de instituições formalmente democráticas, levaram à Presidência, utilizando os mecanismos eleitorais existentes, lideres com programas anti-neoliberais e moderadamente anti imperialistas. Foi o que aconteceu na Venezuela, no Brasil, no Paraguai, no Uruguai e, embora em circunstâncias diferentes, no Equador e na Argentina. Essas experiências apresentam ensinamentos de grande significado ainda insuficientemente estudados. Não vou aqui, é óbvio, deter me na análise, mesmo superficial, dos êxitos e fracassos que assinalam o seu caminhar. Permito me apenas extrair algumas conclusões de ordem geral.
Washington compreendeu que a contestação dos povos da América Latina às políticas neoliberais estava ganhando uma amplitude que ameaçava a dominação imperial sobre o Continente. A sua contra ofensiva foi quase imediata. A evolução dos acontecimentos demonstra que em países onde as forças da direita tinham sofrido grandes derrotas, presidentes eleitos por forças progressistas não respeitaram os compromissos assumidos com o povo. No Equador, Lúcio Gutierrez, numa guinada de 180 graus, passou a ser um aliado preferencial de Washington. A entrega do comandante Simon Trinidad, das FARC, a Uribe (que, por sua vez, o entregou aos EUA) foi um gesto indecoroso que suscitou indignação a nível continental. Lúcio não terminou, entretanto seu mandato. O povo equatoriano, revoltado com a sua politica de vassalagem, derrubou o, obrigando o a fugir. Teve o destino de Mahuad. Seria, contudo, uma ingenuidade acreditar que o seu sucessor, o Presidente Palácios, vai dar início a uma política que responda às aspirações populares No Paraguai, o Presidente Nicanor Duarte, que na sua investidura pronunciou um vibrante discurso de recorte anti neoliberal com matizes anti imperialistas, cedeu rapidamente às pressões de Washington. Não somente aceita agora a presença de tropas norte americanas no pais, e portanto a instalação de uma base militar, como promulgou a lei que atribui imunidade a oficiais e soldados dos EUA acusados de crimes de guerra. No Uruguai é cedo para se avaliar o resultado histórico da grande vitória eleitoral da Frente Ampla. Mas o rumo do governo de Tabaré Vasquez justifica a frustração crescente do povo de Artigas perante as consequências de uma política inspirada nas receitas neoliberais do Brasil, incompatível com as esperanças e reivindicações das massas. Na Argentina, o «capitalismo normal» de Kirchner, bem radiografado por James Petras, não envolve também uma ruptura com os objectivos do neoliberalismo. Com muita habilidade, o ex governador da Patagónia, esforça se na Casa Rosada por humanizar o capitalismo, como se isso fosse possível. Mas, sendo um populista talentoso, consegue enganar milhões de compatriotas e a sua popularidade mantém se num nível elevado.
Quanto ao Brasil, serei brevíssimo. O país encontra se mergulhado numa crise gravíssima, de desfecho imprevisível. Neste painel participa João Pedro Stedile, o destacado dirigente do MST na minha opinião hoje o movimento social mais importante e combativo da América Latina. É a ti, João, que cabe falar sobre as frustrações, êxitos e desafios do povo brasileiro na luta pela democracia no espaço latino americano. Direi apenas o obvio: o governo de Lula, longe de utilizar as instituições em beneficio do povo, desenvolveu desde o início politicas que não ferem a lógica do capitalismo e lhe serviram mesmo os interesses estratégicos. O facto de a sua politica exterior ter sido globalmente positiva, apesar de manchada pelo envio de tropas para o Haiti, não altera o julgamento negativo que a historia fará da sua passagem pela Presidência.
Na Região banhada pelo Caribe, Washington adoptou uma estratégia particularmente agressiva, com a atenção concentrada no triângulo Colômbia Cuba Venezuela. A sobrevivência das guerrilhas das FARC e do ELN na Colômbia constitui um pesadelo para o Pentágono. A luta das FARC, sobretudo, confirma que em situações históricas, geográficas e sociais excepcionais, a luta armada continua a ser possível. Há mais de quatro décadas que a oligarquia colombiana anuncia o fim iminente da guerrilha de Manuel Marulanda. Entretanto, o núcleo inicial de 47 combatentes transformou se num exército popular de 18 000 homens que luta em 60 Frentes. No ano corrente, o ambicioso Plano Patriota, integrado no Plano Colômbia foi a pique. As FARC infligiram nos últimos meses duras derrotas ao mais poderoso exército da América Latina. É significativo que o presidente Álvaro Uribe, o melhor aliado de George Bush no Continente, desenvolva uma politica de contornos fascizantes. E não menos esclarecedor que o governo de Washington, autoproclamado campeão da luta contra o terrorismo, tenha aprovado os sequestros no Equador e na Venezuela, dos comandantes Simon Trinidad e Rodrigo Granda, actos terroristas realizados com a colaboração da CIA.
Cuba é outro vértice do triângulo caribenho que preocupa o sistema de poder imperial. O povo da Ilha não se submete. Não abdica do propósito de construir e defender o socialismo. Na perspectiva da equipa de Bush a sua revolução, após mais de quatro décadas de bloqueio, oferece um exemplo perigoso para a América Latina. Cuba não somente sobreviveu ao desmoronamento da URSS com a qual realizava mais de 80% das suas relações comerciais, como está a caminho de recuperar o nível económico que tinha há 15 anos. Cuba resistiu, seguindo o seu caminho. E isso é intolerável para Washington. Cuba é o único pai do Hemisfério onde o direito à vida, à saúde, à educação são pilares de um conceito dos direitos humanos revolucionário, que não é farisaico como das democracias formais do mundo capitalista. Não creio que os EUA, atolados no Iraque e no Afeganistão, estejam actualmente em situação de invadir Cuba. Mas o povo cubano sente se, com fundamento, ameaçado e agredido. A politica de Bush visa a asfixiar economicamente a Ilha, insistindo aliás em financiar os grupelhos terroristas de Miami. Dai a necessidade de ampliar a solidariedade com o heróico povo cubano.
*Publicamos hoje a primeira parte da intervenção de Miguel Urbano Rodrigues, proferida em 29 de Agosto, no Rio de Janeiro, no II Seminário Internacional Um Outro Olhar Sobre a América Latina
A democracia é uma ausência na quase totalidade do Hemisfério. Instituições formalmente democráticas funcionam na prática, em quase todos os países a Sul do rio Bravo como instrumento de concretização das estratégias e interesses do imperialismo e das burguesias locais. O controle da mídia pelas forças do capital impede, com raríssimas excepções, as grandes maiorias de tomar consciência da caricatura de democracia que serve de moldura a sistemas de poder que excluem na pratica a participação do povo nas decisões de que dependem o seu presente e o seu futuro.
A intelectualidade burguesa gosta de recordar que a Revolução Francesa se inspirou na democracia aristotélica. Mas omite que na democracia aristocrática de Atenas, como em qualquer polis grega, somente uma ínfima percentagem da população tinha acesso às assembleias. A Revolução Americana, que se tornou quase objecto de culto para a burguesia brasileira, como criadora de um modelo de democracia, produziu uma Constituição que apenas concedia o voto a uma minoria de cidadãos. Esse direito, erigido em privilégio, nascia da riqueza. A farsa democrática não é identificável somente na América Latina. Em artigo de comentário ao NÃO francês, publicado no sítio web resistir.info, chamei a atenção para o facto, com frequência esquecido, de que a chamada democracia representativa não passa hoje na Europa de uma figura de retórica.
Nos 15 países que integravam a União Europeia antes do seu alargamento os regimes existentes adquiriram progressivamente os contornos de ditaduras da burguesia, empenhadas em aplicar as receitas do neoliberalismo globalizado. Nos novos membros da Europa Central e do Leste os governos alguns com tendências fascizantes actuam como satélites de Washington. Obviamente, existem diferenças profundas entre os regimes supostamente democráticos de países como a França e o Reino Unido apenas um exemplo e os existentes na Colômbia e no Peru. Elas resultam do desenvolvimento da história, da cultura dos povos, do funcionamento das instituições e também da presença de heranças imperialistas complexas. Mas a diferenciação não impede a convergência no tocante a um objectivo que pode ser apontado como denominador comum: na Europa, tal como na América Latina, as políticas dos governos eleitos «democraticamente» são elaboradas e executadas com duas únicas excepções à revelia da vontade dos povos que os viabilizaram. Os mecanismos institucionais são utilizados em beneficio das classes dominantes, para excluir a participação em vez de a promoverem.
Este alerta inicial justifica se num Seminário em que nos reunimos para reflectir sobre a luta pela Democracia no espaço latino americano. Coloco ênfase na palavra luta. Em Julho passado, o escritor José Saramago, meu compatriota, em entrevista concedida em San Salvador, divulgada pelo sítio «Rebelion» afirmou que hoje «não se trata de substituir um governo por outro, mas de refundar o conceito de democracia». No mundo globalizado sublinhou «estamos vivendo todos numa espécie de Apocalipse Negro no qual não parece haver solução imediata e é isso que representa a maior afronta à humanidade». Segundo o Premio Nobel de Literatura, para superarmos a crise de civilização e evitarmos o colapso, é urgente «colocar no centro da discussão o tema da democracia, da democracia autêntica, de refundar o conceito a partir das necessidades reais em que vivem as pessoas».
Reflectindo sobre a alternativa, conclui que a exigência para todos, diária, terá que ser «a reinvenção da democracia». Creio que todos estamos de acordo com Saramago quando nos recorda que «se não chegarmos a uma democracia plena (...) o poder tende a concentrar se mais no politico, subordinado ao económico e ao financeiro, e será autoritário, e então, se não se mudar essa relação de poder, a situação se agravará». Na prática já é autoritário, funcionando como ditadura da classe dominante. E essa realidade força a uma tomada de consciência de todos quantos rejeitam o sistema: a luta não pode esperar pelo debate teórico sobre os contornos da democracia autêntica. Antes de podermos definir com rigor o que queremos, somos forçados pelo movimento da história a lutar contra o que não queremos, contra aquilo que recusamos.
A democracia participativa, revolucionária, tal como a define Labica, será o desfecho natural de um confronto de duração imprevisível com o monstruoso sistema de dominação planetária do capitalismo, hegemonizado hoje pelos EUA. O capitalismo, como Istvan Meszaros e Samir Amin, entre outros pensadores, têm demonstrado, atravessa uma crise estrutural que o imperialismo estadunidense procura superar, em opção irracional, através das chamadas guerras preventivas e do saque dos recursos naturais de povos .do Terceiro Mundo. Coloca se portanto uma questão de prioridades: a primeira tarefa, em defesa da humanidade contra a barbárie, deve ser portanto a participação dos povos numa luta solidária, tão globalizada quanto possível, contra a engrenagem imperial que os oprime. Na América Latina, essa difícil luta pela Democracia, em desenvolvimento, tende a assumir dimensão continental, assumindo características peculiares, mas muito diversificadas.
Um panorama muito contraditório
A América Latina é uma diversidade. Entre os países que a constituem existem abismos culturais e económicos. O denominador comum é a dependência de um sistema de poder imperial e a herança resultante com excepção do Haiti e de algumas ilhas de terem sido colonizados pela Espanha e por Portugal cujos idiomas são hoje aqui falados por mais de 500 milhões de pessoas. Foram diferentes as estratégias dos colonizadores. Mas, com poucas excepções, ficaram assinaladas por políticas de genocídios. Os de Tenochtitlán, no México, e o posterior à conquista do Tahuantinsuyo, no Peru do Incário, deixaram memoria pela sua amplitude.
Essas chacinas (dois séculos após a conquista, a população desses territórios não atingia 20% da existente antes da chegada dos espanhóis) deixaram marcas profundas no imaginário dos povos mestiços contemporâneos, filhos de culturas antagónicas. A independência politica não conduziu à independência real. Os ideais de Bolívar não se concretizaram. Nos países por ele libertados, no México, no Prata, no Brasil, em toda a vastidão latino americana, a um tipo de dominação sucedeu outra. Durante mais de um século, o imperialismo britânico, aliado às oligarquias locais, exerceu sobre a América do Sul uma hegemonia económica ostensiva. A partir do final da Primeira Guerra Mundial, o imperialismo estadunidense, que já dominava no México, na América Central e nas Caraíbas, ocupou o seu lugar. Com a agravante de que os mecanismos da dominação politica, em muitos casos, acompanharam a penetração do capital, reduzindo alguns países à condição de colónias de novo tipo.
Não cabe aqui recordar a história contemporânea da América Latina. Mas, para reflectirmos sobre as lutas do presente, é oportuno lembrar que, a partir do inicio da Revolução Cubana, o sentimento anti imperialista, que permanecera na consciência dos povos, cresceu torrencialmente, emergindo como elemento fundamental nas lutas contra o sistema de opressão generalizado. Cuba demonstrava que era possível derrotar o inimigo interno e resistir ao imperialismo. A incompreensão de que a revolução cubana se impusera em circunstâncias excepcionais, gerou ilusões e esteve na origem de uma época de aventuras guerrilheiras, que envolveram uma geração de revolucionários românticos. O desfecho desses desafios de gente generosa é conhecido. Em algumas situações foram o prólogo da implantação de ditaduras militares sanguinárias. Chamarei apenas a atenção para duas questões:
1 - Contra o que Washington proclamou após a morte do Che, a derrota das guerrilhas rurais e urbanas no Sul do Continente não demonstrou que a luta armada se havia tornado uma impossibilidade absoluta. A vitória do sandinismo, na Nicarágua, em 1979 viabilizada pela estratégia de Carlos Fonseca Amador, um grande revolucionário quase desconhecido e a incapacidade do imperialismo para derrotar militarmente os combatentes da Frente Farabundo Marti, em El Salvador, e os da UNRG na Guatemala, desmentiram a tese imperialista. Simultaneamente a insurgência colombiana tem sobrevivido a todas as tentativas empreendidas para a aniquilar.
2 - A persistência nos povos latinoamericanos de um sentimento anti-imperialista enraizado torna hoje possível na América Latina o que na Europa, por múltiplos motivos, não tem estado ao seu alcance. Refiro me à possibilidade de conquista do poder Executivo através de eleições por personalidades e forças que se apresentam com programas anti neoliberais e anti imperialistas. A reflexão sobre a segunda questão, isto é sobre problemas e desafios colocados pela chamada via institucional, é muito importante num Seminário como o nosso. Uma revolução cuja meta seja o socialismo a curto prazo, não é, com a actual relação de forças, possível em sociedades como as latino-americanas. Mas a luta pela conquista de parcelas do poder político, onde quer que isso seja viável, apresenta se como dever para as forças progressistas.
Lénine enunciou uma evidência ao afirmar que o governo em sociedades capitalistas representa apenas as insígnias do poder. É parcela e instrumento do Estado criado pela burguesia para lhe servir os objectivos. A evolução e o desfecho da experiência socializante da Unidade Popular, no Chile, lembram nos que o governo de Allende nunca controlou o Estado na sua totalidade o Legislativo e o Judiciário hostilizaram no permanentemente e muito menos o Poder económico.
O desenvolvimento da História nos últimos anos desmentiu, porem, a tese segundo a qual a era das revoluções teria findado e o neoliberalismo globalizado seria a ideologia definitiva. Seattle serve de referência, assinalando o início de uma época em que os povos começaram a mobilizar se para expressar, em manifestações marcadas pelo espontaneísmo, a sua recusa do projecto de vida que o imperialismo lhes pretende impor. No caso da América Latina, os seus povos infligiram derrotas importantes ao poderoso vizinho do Norte. As consequências desastrosas das políticas do chamado Consenso de Washington na realidade um diktat geraram um descontentamento entre as massas que se traduziu em dois tipos de rejeição:
1 - Gigantescas acções de protesto que desembocaram em rebeliões populares que levaram ao derrubamento de Presidentes, como ocorreu no Equador, na Bolívia e na Argentina.
2 - A formação de alianças de forças maioritariamente progressistas que, no âmbito de instituições formalmente democráticas, levaram à Presidência, utilizando os mecanismos eleitorais existentes, lideres com programas anti-neoliberais e moderadamente anti imperialistas. Foi o que aconteceu na Venezuela, no Brasil, no Paraguai, no Uruguai e, embora em circunstâncias diferentes, no Equador e na Argentina. Essas experiências apresentam ensinamentos de grande significado ainda insuficientemente estudados. Não vou aqui, é óbvio, deter me na análise, mesmo superficial, dos êxitos e fracassos que assinalam o seu caminhar. Permito me apenas extrair algumas conclusões de ordem geral.
Washington compreendeu que a contestação dos povos da América Latina às políticas neoliberais estava ganhando uma amplitude que ameaçava a dominação imperial sobre o Continente. A sua contra ofensiva foi quase imediata. A evolução dos acontecimentos demonstra que em países onde as forças da direita tinham sofrido grandes derrotas, presidentes eleitos por forças progressistas não respeitaram os compromissos assumidos com o povo. No Equador, Lúcio Gutierrez, numa guinada de 180 graus, passou a ser um aliado preferencial de Washington. A entrega do comandante Simon Trinidad, das FARC, a Uribe (que, por sua vez, o entregou aos EUA) foi um gesto indecoroso que suscitou indignação a nível continental. Lúcio não terminou, entretanto seu mandato. O povo equatoriano, revoltado com a sua politica de vassalagem, derrubou o, obrigando o a fugir. Teve o destino de Mahuad. Seria, contudo, uma ingenuidade acreditar que o seu sucessor, o Presidente Palácios, vai dar início a uma política que responda às aspirações populares No Paraguai, o Presidente Nicanor Duarte, que na sua investidura pronunciou um vibrante discurso de recorte anti neoliberal com matizes anti imperialistas, cedeu rapidamente às pressões de Washington. Não somente aceita agora a presença de tropas norte americanas no pais, e portanto a instalação de uma base militar, como promulgou a lei que atribui imunidade a oficiais e soldados dos EUA acusados de crimes de guerra. No Uruguai é cedo para se avaliar o resultado histórico da grande vitória eleitoral da Frente Ampla. Mas o rumo do governo de Tabaré Vasquez justifica a frustração crescente do povo de Artigas perante as consequências de uma política inspirada nas receitas neoliberais do Brasil, incompatível com as esperanças e reivindicações das massas. Na Argentina, o «capitalismo normal» de Kirchner, bem radiografado por James Petras, não envolve também uma ruptura com os objectivos do neoliberalismo. Com muita habilidade, o ex governador da Patagónia, esforça se na Casa Rosada por humanizar o capitalismo, como se isso fosse possível. Mas, sendo um populista talentoso, consegue enganar milhões de compatriotas e a sua popularidade mantém se num nível elevado.
Quanto ao Brasil, serei brevíssimo. O país encontra se mergulhado numa crise gravíssima, de desfecho imprevisível. Neste painel participa João Pedro Stedile, o destacado dirigente do MST na minha opinião hoje o movimento social mais importante e combativo da América Latina. É a ti, João, que cabe falar sobre as frustrações, êxitos e desafios do povo brasileiro na luta pela democracia no espaço latino americano. Direi apenas o obvio: o governo de Lula, longe de utilizar as instituições em beneficio do povo, desenvolveu desde o início politicas que não ferem a lógica do capitalismo e lhe serviram mesmo os interesses estratégicos. O facto de a sua politica exterior ter sido globalmente positiva, apesar de manchada pelo envio de tropas para o Haiti, não altera o julgamento negativo que a historia fará da sua passagem pela Presidência.
Na Região banhada pelo Caribe, Washington adoptou uma estratégia particularmente agressiva, com a atenção concentrada no triângulo Colômbia Cuba Venezuela. A sobrevivência das guerrilhas das FARC e do ELN na Colômbia constitui um pesadelo para o Pentágono. A luta das FARC, sobretudo, confirma que em situações históricas, geográficas e sociais excepcionais, a luta armada continua a ser possível. Há mais de quatro décadas que a oligarquia colombiana anuncia o fim iminente da guerrilha de Manuel Marulanda. Entretanto, o núcleo inicial de 47 combatentes transformou se num exército popular de 18 000 homens que luta em 60 Frentes. No ano corrente, o ambicioso Plano Patriota, integrado no Plano Colômbia foi a pique. As FARC infligiram nos últimos meses duras derrotas ao mais poderoso exército da América Latina. É significativo que o presidente Álvaro Uribe, o melhor aliado de George Bush no Continente, desenvolva uma politica de contornos fascizantes. E não menos esclarecedor que o governo de Washington, autoproclamado campeão da luta contra o terrorismo, tenha aprovado os sequestros no Equador e na Venezuela, dos comandantes Simon Trinidad e Rodrigo Granda, actos terroristas realizados com a colaboração da CIA.
Cuba é outro vértice do triângulo caribenho que preocupa o sistema de poder imperial. O povo da Ilha não se submete. Não abdica do propósito de construir e defender o socialismo. Na perspectiva da equipa de Bush a sua revolução, após mais de quatro décadas de bloqueio, oferece um exemplo perigoso para a América Latina. Cuba não somente sobreviveu ao desmoronamento da URSS com a qual realizava mais de 80% das suas relações comerciais, como está a caminho de recuperar o nível económico que tinha há 15 anos. Cuba resistiu, seguindo o seu caminho. E isso é intolerável para Washington. Cuba é o único pai do Hemisfério onde o direito à vida, à saúde, à educação são pilares de um conceito dos direitos humanos revolucionário, que não é farisaico como das democracias formais do mundo capitalista. Não creio que os EUA, atolados no Iraque e no Afeganistão, estejam actualmente em situação de invadir Cuba. Mas o povo cubano sente se, com fundamento, ameaçado e agredido. A politica de Bush visa a asfixiar economicamente a Ilha, insistindo aliás em financiar os grupelhos terroristas de Miami. Dai a necessidade de ampliar a solidariedade com o heróico povo cubano.
*Publicamos hoje a primeira parte da intervenção de Miguel Urbano Rodrigues, proferida em 29 de Agosto, no Rio de Janeiro, no II Seminário Internacional Um Outro Olhar Sobre a América Latina